quinta-feira, 3 de junho de 2010

"A Flor de Vidro" - conto de Murilo Rubião,1965






Contista nasceu em Minas Gerais,
na cidade de Carmo de Minas.


Murilo Rubião, mestre do conto fantástico, um dos maiores autores da literatura brasileira. Sua obra contém suspense, tragédia, humor, ironia.  Aos publicitários:  Murilo é fonte inspiradora de criatividade.


A FLOR DE VIDRO


“E haverá um dia conhecido do Senhor que não será dia nem noite, e na tarde desse dia aparecerá a luz.” – Zacarias, XIV, 7.

Da flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga. Mas havia a saudade de Marialice, cujos movimentos se insinuavam pelos campos — às vezes verdes, também cinzentos. O sorriso dela brincava na face tosca das mulheres dos colonos, escorria pelo verniz dos móveis, desprendia-se das paredes alvas do casarão. Acompanhava o trem de ferro que ele via passar, todas as tardes, da sede da fazenda. A máquina soltava fagulhas e o apito gritava: Marialice, Marialice, Marialice. A última nota era angustiante.

— Marialice!

Foi a velha empregada que gritou e Eronides ficou sem saber se o nome brotara da garganta da Rosária ou do seu pensamento.

— Sim, ela vai chegar. Ela vai chegar!

Uma realidade inesperada sacudiu-lhe o corpo com violência. Afobado, colocou uma venda negra na vista inutilizada e passou a navalha no resto do cabelo que lhe rodeava a cabeça.

Lançou-se pela escadaria abaixo, empurrado por uma alegria desvairada. Correu entre aléias de eucaliptos, atingindo a várzea.

Marialice saltou rápida do vagão e abraçou-o demoradamente:

— Oh, meu general russo! Como está lindo!

Não envelhecera tanto como ele. Os seus trinta anos, ágeis e lépidos, davam a impressão de vinte e dois — sem vaidade, sem ânsia de juventude.

Antes que chegassem a casa, apertou-a nos braços, beijando-a por longo tempo. Ela não opôs resistência e Eronides compreendeu que Marialice viera para sempre.

Horas depois (as paredes conservavam a umidade dos beijos deles), indagou o que fizera na sua ausência.

Preferiu responder à sua maneira:

— Ontem pensei muito em você.

A noite surpreendeu-os sorrindo. Os corpos unidos, quis falar em Dagô, mas se convenceu de que não houvera outros homens. Nem antes nem depois.

As moscas de todas as noites, que sempre velaram a sua insônia, não vieram.

Acordou cedo, vagando ainda nos limites do sonho. Olhou para o lado e, não vendo Marialice, tentou reencetar o sono interrompido. Pelo seu corpo, porém, perpassava uma seiva nova. Jogou-se fora da cama e encontrou, no espelho, os cabelos antigos. Brilhavam-lhe os olhos e a venda negra desaparecera.

Ao abrir a porta, deu com Marialice:

— Seu preguiçoso, esqueceu-se do nosso passeio? Contemplou-a maravilhado, vendo-a jovem e fresca. Dezoito anos rondavam-lhe o corpo esbelto. Agarrou-a com sofreguidão, desejando lembrar-lhe a noite anterior. Silenciou-o a convicção de que doze anos tinham-se esvanecido.

O roteiro era antigo, mas algo de novo irrompia pelas suas faces. A manhã mal des-pontara e o orvalho passava do capim para os seus pés. Os braços dele rodeavam os ombros da namorada e, amiúde, interrompia a caminhada para beijar-lhe os cabelos. Ao se aproximarem da mata — termo de todos os seus passeios — o sol brilhava intenso. Largou-a na orla do cerrado e penetrou no bosque. Exasperada, ela acompanhava-o com dificuldade:

— Bruto! Ó bruto! Me espera!

Rindo, sem voltar-se, os ramos arranhando o seu rosto, Eronides desapareceu por entre as árvores. Ouvia, a espaços, os gritos dela:

— Tomara que um galho lhe fure os olhos, diabo!

De lá, trouxe-lhe uma flor azul.

Marialice chorava. Aos poucos acalmou-se, aceitou a flor e lhe deu um beijo rápido. Eronides avançou para abraçá-la, mas ela escapuliu, correndo pelo campo afora.

Mais adiante tropeçou e caiu. Ele segurou-a no chão, enquanto Marialice resistia, puxando-lhe os cabelos.

A paz não tardou a retornar, porque neles o amor se nutria da luta e do desespero.

Os passeios sucediam-se. Mudavam o horário e acabavam na mata. Às vezes, pensando ter divisado a flor de vidro no alto de uma árvore, comprimia Marialice nos braços. Ela assustava-se, olhava-o silenciosa, à espera de uma explicação. Contudo, ele guardava para si as razões do seu terror.

O final das férias coincidiu com as últimas chuvas. Debaixo de tremendo aguaceiro, Eronides levou-a à estação.

Quando o trem se pôs em movimento, a presença da flor de vidro revelou-se imediatamente. Os seus olhos se turvaram e um apelo rouco desprendeu-se dos seus lábios.

O lenço branco, sacudido da janela, foi a única resposta. Porém os trilhos, paralelos, sumindo-se ao longe, condenavam-no a irreparável solidão.

Na volta, um galho cegou-lhe a vista.



Fonte: RUBIÃO, MURILO. A Flor de Vidro. In O Pirotécnico Zacarias. 16ª ed. São Paulo, Ática, 1993.

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