domingo, 24 de abril de 2011

"Indorock" embalou multidões na década de 60


The Javalins


Indo-Rock foi uma das mais enigmáticas e explosivas cenas da história. Ocorreu no curto período de cinco anos (de 1959 a 1964), na Holanda e foi encabeça por bandas literalmente doidas por música, formadas em sua maioria por jovens imigrantes indonésios.

Embora sua história comece nos idos de 1945, quando a então colônia holandesa da Indonésia conquista sua independência, culminando em uma emigração massiva para a Holanda, a paixão dos indonésios pelos instrumentos de corda remonta ao século XVI, quando tal qual as origens de nossa viola-de-cocho, exploradores portugueses e espanhóis introduziram por aquelas paragens o gosto pela sonoridade de alaúdes e violões, o que originou um gênero de música popular chamado chamado "krontjong", marcado principalmente pelo "diálogo instintivo" entre os instrumentos. Além do que, já no século XX, também nutriam uma forte predileção por música hawaiana e sucessos da música norte americana difundidos por rádios instaladas em bases nas Filipinas e na Austrália.

The Tielman Brothers

Mas voltando à Holanda... a cena indo-rock surgiu de fato graças a esses jovens que imprimiam suas tão peculiares características culturais a sons tão característicamente ocidentais como o jazz, o country e o blues. Indubitavelmente, o maior nome do cena indo-rock é o dos Thielman Brothers, que quando crianças já tocavam pelos clubes de Jacarta e tão logo se mudaram para os Países Baixos, tornaram-se um dos nomes mais selvagens e incógnitos da história do rock.

No período, só a Holanda já contava com cerca de 300 bandas de indo-rock (catalogadas). Além dos já citados Tielman Brothers, bandas como The Javalins, The Crazy Rockers, The Black Dynamites, The Hep-Cats, incendiavam os bailes e as vitrolas daquele minúsculo país europeu.


The Black Dynamites

Como o mercado holandês já se encontrava bastante saturado, muitas dessas bandas foram tentar a sorte na Alemanha, principalmente nos pubs portuários da mesma Hamburgo que lançara o Beatles, de onde sempre voltavam com os bolsos abarrotados de dinheiro.

Uma das caracteríticas principais das bandas, além de serem formadas por indonésios, era sua configuração física, pois além de terem uma bateria e um baixo, eram marcadas pela presença média de três guitarristas, os quais costumavam deixar a platéia em polvorosa com suas guitarras "customizadas" ao seu gosto. Uma das marcas mais usadas então era a alemã Höfner.

Em 1964 a cena indo-rock perde sua força, pois a invasão britânica também tomou conta da Holanda. Não obstante e buscando se reinventar, as já sacramentadas bandas se desfazem e o talento de seus músicos acaba sendo absorvido pela então nascente e visceral cena Nederbeat, mas isso já é assunto para outra ocasião. Um grande abraço a todos e até a próxima semana.

The Hap-Cats


Electric Johnny & The Sky Rockets

 
Fonte: Jornal Folha do Estado - Cuiabá/MT publicado em 12/07/2009, com o título "VOCÊ CONHECE INDO-ROCK?!"

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Receita de Ano Novo - Carlos Drummond Andrade, 1977





Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções

para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.



Fonte: Extraído do livro Discurso de primavera e algumas sombras, de 1977. Foi também publicado no Jornal do Brasil", vinte anos depois em dezembro de 1997.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

"Pronominais", um poema de Oswald de Andrade, de 1925


 
Oswald de Andrade inovou
    no estilo de escrita e nos temas abordados


Abaixo um dos mais conhecidos poemas de Oswald de Andrade, um dos líderes do movimento modernista de nossa literatura. O poema faz uma inovação para a época: os versos livres sem rima e sem métrica.

O texto foi extraído do livro "Pau-Brasil", lançado originalmente em 1925, em Paris. Antes porém, foi publicado parcialmente nas páginas do jornal Correio da Manhã, em março de 1924.


PRONOMINAIS

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Pelé dedicou seu milésimo gol às crianças do Brasil, em 1969



Noite de 19 de novembro de 1969. Maracanã lotado, com um público de 65.157 pagantes que foi assistir ao confronto entre Vasco e Santos, em jogo válido pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa (correspondente ao nosso campeonato brasileiro atual).

Aos 33 minutos do segundo tempo o volante Clodoaldo lançou Pelé dentro da área, que foi derrubado pelo zagueiro do Vasco Renê. Pênalti. Pelé cobra com perfeição no canto esquerdo do goleiro Andrada, de nacionalidade argentina. Andrada, furioso, chega a esmurrar o chão (Off: imagina se o Andrada pega! É festa na Argentina...). O gol deu a vitória de 2 a 1 para o Santos.

Consumada a cobraça do pênalti o estádio "veio abaixo" em emoção e foi inevitável a invasão do gramado pela imprensa esportiva. Até quem não era santista vibrou. Pelé, emocionado, é carregado pelos braços para o centro do campo e pede frente às câmeras: "vamos proteger as criancinhas necessitadas". Simbolicamente, o atleta do século ofertou naquele momento sua obra máxima. E não qualquer obra: o gol, que em nossa cultura traz consigo a força da alegria do povo.  

Posteriormente, Edson Arantes do Nascimento engajou-se em campanhas educacionais tendo, inclusive, enveredado pelo caminho musical ao gravar a conhecida canção "ABC", cujo refrão defende: "toda criança tem que ler e escrever" (ouça em http://bit.ly/cIAF1n)(off: ok gente vamos lá, a intenção foi verdadeiramente sublime).  

Pelé, ídolo das massas, tornou-se também embaixador para Ecologia e Meio ambiente (ONU,1992), embaixador da Boa Vontade (UNESCO,1993), embaixador para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco,1994) e durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso foi Ministro dos Esportes, entre os anos 1995 e 1998.

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Leia abaixo trecho do capítulo IV do livro autobiográfico "Pelé: Minha Vida em Imagens" (Editora Cosac Naify, lançado este ano)

"Corri para a marca, dei uma paradinha, e chutei.

Goooooooool!

Corri direto para o fundo da rede, peguei a bola e dei um beijo nela. O estádio explodiu, com
rojões e aplausos. De repente fui cercado por uma multidão de jornalistas e repórteres. Colocaram
microfones na minha frente e eu então dediquei aquele gol às crianças do Brasil. Disse que
tínhamos de dar atenção para as criancinhas. Comecei, então, a chorar, fui colocado sobre os
ombros de alguém e ergui a bola para o alto. O jogo foi suspenso por vinte minutos, enquanto eu
dava uma volta olímpica. Alguns torcedores do Vasco correram em minha direção e me deram uma
camisa do time com o número 1000. Achei estranho, mas não tive alternativa a não ser vesti-la ali
mesmo.

Por que falei das criancinhas? Naquele dia, era aniversário de minha mãe, então talvez eu devesse
dedicar o gol a ela. Não sei por que não pensei nisso. Mas, diferentemente, na hora, pensei nas
crianças. O que aconteceu foi que me lembrei de um acidente que tinha acontecido em Santos alguns
meses antes. Eu tinha saído do treino um pouco mais cedo e vi alguns garotos tentando roubar um
carro que estava perto do meu. Eram muito pequenos, do tipo para quem se costuma dar um
dinheirinho para tomar conta do carro. Chamei a atenção deles para o que faziam, e eles replicaram
que eu não precisava me preocupar pois só roubariam carros com placas de São Paulo. Mandei-os sair
dali, dizendo que eles não roubariam carro de nenhum lugar. Lembro-me de ter comentado sobre isso,
mais tarde, com um companheiro de time, sobre a dificuldade de se crescer e educar no Brasil. Já
então me preocupava com a questão da educação das crianças, e essa foi a primeira coisa que surgiu
em minha cabeça quando marquei o gol.

Acho que muita gente não entendeu o que eu estava querendo dizer. Fui um pouco criticado, com
pessoas me chamando de demagogo. Achavam que eu não tinha sido sincero. Mas isso não me incomodou.
Acredito ser importante que pessoas como eu mandem mensagens sobre a questão da educação. Não
haverá futuro se você não educar os jovens. Hoje, quando você anda pelo Brasil e vê os problemas
que temos, com gente morando nas ruas e gangues em ação, elas também já foram crianças. Agora
dizem que o Pelé estava certo. Não tenho medo de falar com o coração."




Serviço:

terça-feira, 8 de junho de 2010

Murilo outra vez, em texto de 1947








Murilo Rubião utiliza a personagem do mágico de circo para brincar com o leitor e provocar sua imaginação.




Este é um dos meus contos fantásticos preferidos. Trata-se do texto mais conhecido de Murilo Rubião. No conto, a história de um mágico, ou ex-mágico, muito diferente do comum: um homem entediado e que mal sabe lidar com seus truques aos quais não controla, sua vida em si é uma tragédia mágica... Imperdível. Um passeio pelo melhor estilo do mestre Rubião.



O EX-MÁGICO DA TABERNA MINHOTA



"Inclina, Senhor, o teu ouvido, e ouve-me; porque eu sou desvalido e pobre" -  Salmos. LXXXV, I


Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior.

Na verdade, eu não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de dissabores.

Tal não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude.

Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante. Ele sim, perplexo, me perguntou como podia ter feito aquilo.

O que poderia responder, nessa situação, uma pessoa que não encontrava a menor explicação para sua presença no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado e entediado.

Sem meditar na resposta, ou fazer outras perguntas, ofereceu-me emprego e passei daquele momento em diante a divertir a freguesia da casa com os meus passes mágicos.

O homem, entretanto, não gostou da minha prática de oferecer aos espectadores almoços gratuitos, que eu extraía misteriosamente de dentro do paletó. Considerando não ser dos melhores negócios aumentar o número de fregueses sem o conseqüente acréscimo nos lucros, apresentou-me ao empresário do Circo-Parque Andaluz, que, posto a par das minhas habilidades, propôs contratar-me. Antes, porém, aconselhou-o que se prevenisse contra os meus truques, pois ninguém estranharia se me ocorresse a idéia de distribuir ingressos graciosos para os espetáculos.

Contrariando as previsões pessimistas do primeiro patrão, o meu comportamento foi exemplar. As minhas apresentações em público não só empolgaram multidões como deram fabulosos lucros aos donos da companhia.

A platéia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número, em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional da Cochinchina. Os aplausos estrugiam de todos os lados, sob o meu olhar distante.

O gerente do circo, a me espreitar de longe, danava-se com a minha indiferença pelas palmas da assistência. Notadamente se elas partiam das criancinhas que me iam aplaudir nas matinês de domingo. Por que me emocionar, se não me causavam pena aqueles rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o amadurecimento do homem? Muito menos me ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei e não tive: um nascimento e um passado.

Com o crescimento da popularidade a minha vida tornou-se insuportável.

Às vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando na calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas. As pessoas que se encontravam nas imediações, julgando intencional o meu gesto, rompiam em estridentes gargalhadas. Eu olhava melancólico para o chão e resmungava contra o mundo e os pássaros.

Se, distraído, abria as mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A ponto de me surpreender, certa vez, puxando da manga da camisa uma figura, depois outra. Por fim, estava rodeado de figuras estranhas, sem saber que destino lhes dar.

Nada fazia. Olhava para os lados e implorava com os olhos por um socorro que não poderia vir de parte alguma.

Situação cruciante.

Quase sempre, ao tirar o lenço para assoar o nariz, provocava o assombro dos que estavam próximos, sacando um lençol do bolso. Se mexia na gola do paletó, logo aparecia um urubu. Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do sapato, das minhas calças deslizavam cobras. Mulheres e crianças gritavam. Vinham guardas, ajuntavam-se curiosos, um escândalo. Tinha de comparecer à delegacia e ouvir pacientemente da autoridade policial ser proibido soltar serpentes nas vias públicas.

Não protestava. Tímido e humilde mencionava a minha condição de mágico, reafirmando o propósito de não molestar ninguém.

Também, à noite, em meio a um sono tranqüilo, costumava acordar sobressaltado: era um pássaro ruidoso que batera as asas ao sair do meu ouvido.

Numa dessas vezes, irritado, disposto a nunca mais fazer mágicas, mutilei as mãos. Não adiantou. Ao primeiro movimento que fiz, elas reapareceram novas e perfeitas nas pontas dos tocos de braço. Acontecimento de desesperar qualquer pessoa, principalmente um mágico enfastiado do ofício.

Urgia encontrar solução para o meu desespero. Pensando bem, concluí que somente a morte poria termo ao meu desconsolo.

Firme no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços, aguardei o momento em que seria devorado por eles. Nenhum mal me fizeram. Rodearam-me, farejaram minhas roupas, olharam a paisagem, e se foram.

Na manhã seguinte regressaram e se puseram, acintosos, diante de mim.

— O que desejam, estúpidos animais?! — gritei, indignado.

Sacudiram com tristeza as jubas e imploraram-me que os fizesse desaparecer:

— Este mundo é tremendamente tedioso — concluíram.

Não consegui refrear a raiva. Matei-os todos e me pus a devorá-los. Esperava morrer, vítima de fatal indigestão.

Sofrimento dos sofrimentos! Tive imensa dor de barriga e continuei a viver.

O fracasso da tentativa multiplicou minha frustração. Afastei-me da zona urbana e busquei a serra. Ao alcançar seu ponto mais alto, que dominava escuro abismo, abandonei o corpo ao espaço.

Senti apenas uma leve sensação da vizinhança da morte: logo me vi amparado por um pára-quedas. Com dificuldade, machucando-me nas pedras, sujo e estropiado, consegui regressar à cidade, onde a minha primeira providência foi adquirir uma pistola.

Em casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido. Puxei o gatilho, à espera do estampido, a dor da bala penetrando na minha cabeça.

Não veio o disparo nem a morte: a máuser se transformara num lápis.

Rolei até o chão, soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de libertar-me da existência.

Uma frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida. Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos.

Não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado.

1930, ano amargo. Foi mais longo que os posteriores à primeira manifestação que tive da minha existência, ante o espelho da Taberna Minhota.

Não morri, conforme esperava. Maiores foram as minhas aflições, maior o meu desconsolo.

Quando era mágico, pouco lidava com os homens -o palco me distanciava deles. Agora, obrigado a constante contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me causavam.

O pior é que, sendo diminuto meu serviço, via -me na contingência de permanecer à toa horas a fio. E o ócio levou -me à revolta contra a falta de um passado. Por que somente eu, entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para recordar? Os meus dias flutuavam confusos, mesclados com pobres recordações, pequeno saldo de três anos de vida.

O amor que me veio por uma funcionária, vizinha de mesa de trabalho, distraiu-me um pouco das minhas inquietações.

Distração momentânea. Cedo retornou o desassossego, debatia-me em incertezas. Como me declarar à minha colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera sequer uma experiência sentimental!

1931 entrou triste, com ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a recusa da datilógrafa em me aceitar. Ante o risco de ser demitido, procurei acautelar meus interesses. (Não me importava o emprego. Somente temia ficar longe da mulher que me rejeitara, mas cuja presença me era agora indispensável.)

Fui ao chefe da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, pois, tendo dez anos de casa, adquirira estabilidade no cargo.

Fitou-me por algum tempo em silêncio. Depois, fechando a cara, disse que estava atônito com meu cinismo. Jamais poderia esperar de alguém, com um ano de trabalho, ter a ousadia de afirmar que tinha dez.

Para lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos que comprovavam a lisura do meu procedimento. Estupefato, deles retirei apenas um papel amarrotado — fragmento de um poema inspirado nos seios da datilógrafa.

Revolvi, ansioso, todos os bolsos e nada encontrei.

Tive que confessar minha derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia.

Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença de amigos, o que me obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga, por mais que atente a vista.

Pensam que estou louco, principalmente quando atiro ao ar essas pequeninas coisas.

Tenho a impressão de que é uma andorinha a se desvencilhar das minhas mãos. Suspiro alto e fundo.

Não me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico.

Por instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços vermelhos, azuis, brancos, verdes. Encher a noite com fogos de artifício. Erguer o rosto para o céu e deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris. Um arco-íris que cobrisse a Terra de um extremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos brancos, das meigas criancinhas.



Fonte: O ex-mágico. Rio de Janeiro: Editora Universal, 1947.